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sexta-feira, 18 de julho de 2014

DO ESGOTO DO MUNDO À SALVAÇÃO DOS NOSSOS FILHOS

Dom Lourenço Fleichman OSB

O que me leva a escrever hoje é a constatação, cada dia mais evidente, da dificuldade que as famílias católicas têm para viver neste mundo enlouquecido e transviado. O espetáculo que estamos assistindo, e que não se limita ao carnaval, mas ao ano todo, e a todos os anos, é de meter medo. Nossas famílias, nossas melhores famílias, não conseguem se isentar deste mundo. Todos pactuam  com práticas diversas de destruição do que resta de decência e de família. Digo "família" porque já não há mais nada de sociedade a ser preservado, já não temos mais o que defender! Tudo está destruído. Mas talvez ainda possamos lutar dentro de nossas famílias, ou dentro de nossos corações.
Ora, é justamente esta constatação da destruição de todas as realidades sadias da  antiga sociedade que explica a dificuldade das pessoas em não se contaminar.  Explico.

Dentro de uma sociedade em vias de corrupção, as pessoas teriam de sair de casa tomando certos cuidados para não serem contaminadas: cuidados com os outdoors, com as bancas de jornal, com o convívio no trabalho, e até mesmo com  os assaltos na rua. Dentro de suas casas, haveria necessidade de lutar constantemente contra os programas de televisão, tomar cuidado com o tipo de gibi ou de video-game que compra para os filhos. Dentro de uma sociedade assim, indiferente a Deus e apóstata da Santa Religião Católica, os pais de família teriam de trazer para seus filhos um bom catecismo, uma Capela onde se celebre a Santa Missa Tridentina, onde o catecismo fosse ensinado segundo a doutrina de sempre da Igreja.

Mas não é numa sociedade em vias de decadência, que nós vivemos. E é nesse ponto que se encontra o erro de tantos pais. Ao achar que a questão é de grau de corrupção, eles procuram defender  suas famílias sem no entanto tirá-las do ambiente em que estão sendo corrompidas.

Vejam bem o que quero dizer: nossa sociedade já não tem mais nada que mereça a nossa atenção. Os valores em voga nessa sociedade formam um esgoto nojento e fedorento que emporcalha tudo e todos. Não há como escapar! Você sai na rua, você vai ao médico, você compra um jornal, você é engenheiro, ou advogado, ou motorista de ônibus, o que seja, o que se faça, na rua ou dentro de casa, o esgoto se espalha, contamina, agarra-se em nossas peles, transmite o seu cheiro insuportável. E é tal a realidade disso que estou dizendo, que, estando todos contaminados, estando todos sujos e fedorentos nas entranhas de nossos costumes e de nossos interesses, os homens não sentem mais o fedor de si mesmos! Todos agem,  pensam, falam, com os critérios da lama e da cloaca.

A tendência que nós teríamos, seria a de querer comparar todas essas realidades com os critérios da nossa antiga formação. Falaríamos do funk comparando com outros tipos de música: – Ah!, na minha época não era assim!  Falaríamos das pichações, e do homossexualismo, e do nudismo nas ruas, e do sexo desenfreado e vagabundo, do  aborto e das clonagens, sempre comparando, comparando...com o quê? Até quando?
Não, não podemos nos enganar. Não é mais possível esse tipo de sem-vergonhice. É preciso ter a coragem de dizer, de pensar, de saber: acabou! O mundo como nossos pais nos ensinaram já não existe mais. E se os homens ainda votam (meu Deus, ainda se acredita na mentira da "democracia"!!), se os políticos ainda nos governam, é por simples reflexo dos nervos da defunta sociedade liberal e apóstata.
Outro dia me contaram mais uma vez o caso de um professor de universidade, casado, bom pai de família. As mulheres da faculdade avançam sobre os homens, sem querer  saber se é casado, se não é;  umas dez para cada um, que falam com os homens já se encostando, já se entregando. E a pessoa que me contava isso, dizia: "elas já perderam tudo". Eu procurei mostrar ao meu interlocutor que, ao contrário, essas mulheres não perderam nada, porque não há nada mais a ser perdido. Perder, para um católico, é considerar que as mulheres, dentro de uma sociedade com critérios de bem e de mal, de virtudes e de vícios, abandonaram completamente os primeiros e vivem pelos segundos. Mas não é esse o fenômeno que assistimos. O que existe, de fato, é uma sociedade onde o bem e o mal não se opõem, onde não há virtudes e vícios, onde tudo é permitido, onde tudo é "bom". De modo que essas mulheres não agem assim por perversão delas. Não são maus elementos da boa sociedade. É a própria sociedade que é má, que é perversa. Elas nada mais fazem do que viver segundo os critérios desse mundo. Eis um exemplo que vem reforçar o que dizia acima, sobre o esgoto que está pelos ares, no ar que respiramos, nas conversas que temos, na casas como na rua.
E mais uma vez, espantados e agradecidos, é em São Paulo que vamos encontrar a explicação desse tremendo mal, desta horrível provação que é hoje pedida aos que querem se salvar:
«Porque nós não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares».
Vejam bem, o Apóstolo desdenha quase dos pecados pessoais, da carne e do sangue, para nos advertir sobre um tempo em que o mal estaria espalhado pelos ares. Que coisa impressionante! Que revelação tremenda recebeu de Deus São Paulo.

E o que é que ele nos recomenda  para uma situação tão tenebrosa? O combate, a guerra, a espada. Mas não podemos combater simplesmente com as armas comuns que usamos contra a tentação:

«Portanto tomai a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau, e ficar de pé, depois de ter vencido tudo».
É, portanto, uma armadura, que nos cubra dos pés à cabeça, que nos leve à vitória total, sobre tudo, ou seja, sobre a própria sociedade erigida pelo demônio, pelo Anticristo, para a perda e condenação dos justos. Porque os maus, meus filhos, já estão condenados há muito tempo. O que o diabo não suporta é que haja ainda alguns loucos resistindo e querendo o Reino de Deus.
Que haja,  ainda, alguns doidos excomungados pela nova Religião de Vaticano II, conivente e "aberta para o mundo", que preguem o verdadeiro Evangelho de Cristo. Isso ele não suporta. Seu ódio mortal distila sobre esse esgoto do mundo uma saliva fétida e corruptora, que só o torna pior; porém, cheio de astúcias, o torna também mais enganador. E é assim que, insistindo em dizer que o mundo ainda é o mesmo, que as mulheres "perderam tudo", que em outras épocas "não se ouvia funk",  e coisas desse tipo, Satanás vai enganando os bons. E quem são os bons? São vocês. São vocês, que querem permanecer católicos, mas querem conviver com o mundo; que querem agradar a Deus, mas não rechaçam os prazeres mundanos. Que assistem à Missa verdadeira, mas acham que os protestantes são piedosos! Que lutam contra os pecados da carne, mas deixam seus filhos nas boates e na televisão.
E essa gente enganadora, esses cúmplices do demônio, Anticristos dessa nova sociedade má, declaram para quem quer ouvir isso que estou aqui denunciando.
Estando eu, numa sala de família onde alguém assistia a uma entrevista na televisão, o entrevistado, creio que falando em francês, espécie de artista já de idade, com uns cabelos brancos compridos, virou-se para a câmara e deu seu recado final, sua saudação alegre, sorridente, para os estúpidos que o admiram. Abriu os braços como quem mostra o mundo, e num sorriso simpático repetiu três vezes, lentamente, e com um gesto cada vez mais abrangente: Merde, merde, merde!
Que me desculpem os ouvidos pudicos. Mas diante de certas realidades, só o palavrão pode exprimir a realidade. E ele deve ser dito, para evitar que  uma palavra mais amena nos engane sobre a gravidade da coisa. Foi isso que ele disse, e disse bem, pois é esse o mundo que ele prega, é essa a cultura que ele produz, é esse o fedor e a cloaca de que eu falava acima.

E é por isso que os nossos, que os bons pais de família, não conseguem vencer os atrativos do mundo. É por isso que eles abrem as portas de suas casas e deixam entrar este ar tenebroso e fedorento. É porque está já tudo coberto por esta substância, de modo que nem os bons conseguem mais distinguir os perfumes da alma santa, da Igreja santa, da família católica.

Mas eis o que Deus nos revela  como sendo  nossa atitude diante desse quadro:

«E ouvi outra voz do céu que dizia: Saí dela, povo meu, para  não serdes participantes dos seus delitos e para não serdes compreendidos nas suas pragas» (Apoc. 18, 4)

No início do ano, em conversa com as famílias da Capela Nossa Senhora da Conceição, mostrei a elas que para manter-se fiel à Fé e perseverar na busca da salvação, diante do quadro avassalador em que se encontram nossos filhos, era necessária uma cumplicidade voluntária entre os pais e o padre. É preciso hoje,  que os pais trabalhem em conjunto com o sacerdote, querendo ouvir as orientações a que a moral católica nos obriga. Querendo estudar a doutrina, querendo que seus filhos sejam orientados, que tenham contato constante com o padre e com a Capela. Essa cumplicidade precisa ser vivida de modo prático e eficaz, na busca da oração, do Santo Terço dentro de casa, da fuga desse mundo corrompido e contagiante que está carregando de roldão o que vocês têm de mais amado, que são seus filhos. E vocês não estão conseguindo conter a avalanche, e estão se inclinando a achar que é assim mesmo, que todo mundo faz... e o mundo vai tendo cada dia maior presença em suas casas.
Cumplicidade significa renunciar a certas facilidades, a certos confortos, a muita televisão, a um comportamento indecente e imoral que se manifesta nas roupas, nas atitudes, nos gestos, no sexo precoce e pecaminoso. Cumplicidade é impedir, sim!, impedir que seus filhos ouçam esses funks e coisas semelhantes que só fazem arrebentar todas as forças espirituais da alma, movendo a carne para a sensualidade e para o pecado.
Cumplicidade significa organizar o lar de modo a que as atividades sejam orientadas; mas para isso, é preciso perder tempo, perder muito tempo, num esforço difícil mas necessário, organizando biblioteca e videoteca capazes de entreter seus filhos no bem. Vejam! O que eu entendo ser uma guerra para salvar seus filhos, é a presença da mãe junto deles, cada dia mais necessária, justamente no momento em que elas são cada dia mais empurradas para fora de casa, abandonando seus filhos, que vão ser criados numa creche ou por uma empregada. A mãe é chamada hoje,  não é ao fogão e ao tanque, não senhoras! É a um trabalho estafante, na rua, indo de livraria em livraria, de sebo em sebo, recolhendo livros bons, que sejam formadores de valores morais; comprando filmes que tragam algum proveito de  vida e de moral para os próprios pais e para seus filhos. O que as mães precisam fazer é formar-se na Universidade da Família, aprendendo a contar histórias, a brincar de roda, a inventar atividades e passeios, a ensinar música para seus filhos. Se fosse para fazer isso como educadoras, como diretoras de uma firma, como vendedoras de uma loja, aí elas ficariam encantadas... mas como é dentro de casa, ou pelo menos, como é para ser aplicado dentro de casa, elas reclamam, e querem a rua, querem o mundo.... Coisa estranha! Estranha contradição. Dizem que amam seus filhos, mas não querem estar a seu lado, na educação, à serviço de suas alminhas inocentes ameaçadas de morte prematura.
Creio que este papel reservado às mães, traria outras vantagens para seus filhos. Pois é evidente que duas ou três mães poderiam perfeitamente se juntar e trabalhar em conjunto, revezando-se talvez nas tardes ou manhãs livres, para juntar seus filhos em passeios e atividades. Logo apareceria uma que sabe tocar um instrumento, e eis que começa umas aulas de música, nessa idade delicada dos cinco ou seis anos, em que começa a formação musical e artística.

Parece ilusório o que lhes proponho? Talvez pareça ilusório porque as mães já não estão habituadas a esse esforço. Afinal, como é simples apertar um botão de televisão ou computador, e eis o silêncio das ovelhinhas  instalado no lar ... indo  para o  matadouro!

Não me parece ilusório porque são atividades próprias aos educadores, e os pais são educadores por obrigação e por graça de estado.
E se a objeção é o orçamento do lar, que a mãe precisa trabalhar senão não fecham as contas no fim do mês, respondo que são poucos os casos em que há verdadeira necessidade. O que se vê, em geral, é a busca cada vez maior de ter, de possuir, de gastar,  num vício desenfreado que vai contra a virtude da pobreza. Diminuam as necessidades, e que os maridos sejam mais eficazes nos seus trabalhos, pois cabe a eles a cumplicidade de fazer o possível para que a mãe possa criar seus filhos.
Lembrem-se que os filhos não são bonecos bonitinhos que só servem para satisfazer o orgulho e o amor-próprio dos pais, bonecos que se encostam numa creche ou numa televisão para que não atrapalhem o resto do dia. Ter filhos é obrigação de todo casal, e educar é carregar a Cruz de Nosso Senhor, abandonando a vontade própria para transmitir a Fé verdadeira, a verdade natural e sobrenatural, a moral de Deus e o amor ao próximo.
E para completar este combate onde as mães devem ser leoas rugindo contra o mundo devorador, onde os pais devem ser leões fortes e trabalhadores no sustento do lar, onde a família se encontra em todas as atividades, do ritual das refeições em comum, passando pela oração em comum para chegar à Santa Missa, venho exortá-los, agora, a que recebam a bênção do Sagrado Coração sobre as famílias, a Entronização no Lar do Sagrado Coração, como sendo a retaguarda espiritual dessa guerra tremenda e constante,  onde as forças espirituais devem ser preservadas, para que a vida natural não se perca seguindo os passos do demônio e do Anticristo. Façam a Entronização, façam a Renovação anual, e venham para a Capela, venham na 1ª Sexta, no 1º Sábado, receber de Nosso Senhor o Alimento Sacramental que nos dá a força sempre viva da Fé, da Esperança Teologal no sucesso e na Vitória, e a Caridade que é o próprio Deus vindo dentro de nós num dom de Si mesmo, como Amor Substancial. Que a Virgem Maria, Nossa Senhora da Conceição lhes dê forças para combater. É preciso desejar a vida eterna apaixonadamente, sem descanso. Não esmoreçam, pois o Senhor bate, já está às portas; Ele colhe, e queimará a erva daninha que não servir para o seu Celeiro.

domingo, 6 de julho de 2014

CARTA ABERTA AOS PADRES DE CAMPOS - DOM LOURENÇO FLEICHMAN OSB

30/10/2001
Reverendíssimo Dom Licínio e caríssimos padres,
Não sou a pessoa mais indicada para lhes escrever esta carta. Não tenho pretensão de obter dos senhores um assentimento que os senhores não quiseram dar aos bispos da Fraternidade, Dom Fellay e Dom Galarreta, quando estes foram tentar lhes mostrar o tremendo prejuízo que os acordos dos senhores com o Vaticano poderiam acarretar para a Igreja, para o combate pela “Sobrevivência da Tradição”.
No entanto, tenho uma razão muito séria para escrever sobre isso e o faço com o conselho e aprovação do próprio Dom Fellay. Essa razão é que alguns dos nossos fiéis de Niterói e Rio são oriundos de cidades atendidas pelos senhores e sempre tiveram os “Padres de Campos” em alta estima e reverência. Hoje, eles não conseguem atinar com o porquê de um acordo separado da Fraternidade São Pio X e, pior, contra os conselhos e avisos dos bispos da Fraternidade.
Outra razão que me dispõe a lhes escrever é a experiência que vivi, em 1988, no Barroux, quando Dom Gérard Calvet quis, ele também, fazer um acordo com o Vaticano.
Esta é a primeira semelhança que vejo entre a atitude de Dom Gérard e a dos senhores: Mgr. Lefebvre acabara de recusar um acordo por não ver, nas intenções do Vaticano, as garantias necessárias para a sobrevivência da Tradição. Dom Gérard, considerando os interesses particulares do seu mosteiro acima dos interesses da Igreja, aceitou separar-se de Mgr. Lefebvre para recuperar uma situação jurídica e canônica “normal”, largando a espada do combate.
Hoje, igualmente, a Fraternidade acabara de recusar um acordo, pelos mesmos motivos de Mgr. Lefebvre, e os senhores preferiram considerar o bem particular dos senhores e não o bem comum da Igreja. Cansaram-se de viver dia e noite no combate e na marginalização.
Mas as semelhanças não ficam aí.
Quando a Fraternidade estava fazendo as atuais negociações, eu conversava com o Pe. Fernando ao telefone e este me deu três razões que considerava suficientes para ir adiante e fechar o acordo, ainda que sem o Vaticano ter liberado a Missa de S.Pio V:
- muitos novos viriam para a Tradição
- nós teríamos um pé dentro da Roma modernista para pregar a Tradição
- poderíamos voltar atrás, caso fôssemos pressionados
Ora, são exatamente os mesmos argumentos de Dom Gérard, em 1988. Isso é para mim, chocante! Primeiro porque os senhores souberam criticar devidamente, então, a atitude de D. Gérard. Segundo, porque a conclusão lógica a que os senhores são obrigados a chegar hoje, é que D. Gérard teria tido razão!! Ele adiantou-se em dez anos aos senhores, o que os obriga a crer que ele teria tido mais visão das coisas do que os senhores.
Penso que não se pode negar as evidências seguintes:
- os novos que virão não estarão possuídos do desejo de se converter à verdadeira Tradição. Virão aos senhores porque os entraves jurídicos estarão retirados e não por razões de fé. Serão muito simpáticos, mas não buscarão a verdade total, aquele quê de doutrina que leva as almas ao martírio.
- estar dentro da Roma modernista, isso está provado, causa uma contaminação certa dos princípios norteadores do Vaticano II, que são insuflados em doses homeopáticas até que o fruto cai, como caiu a Fraternidade S. Pedro.
- Voltar atrás? Qual deles voltou? Eles preferiram concelebrar com o Papa a voltar atrás! E se voltarem, o que será dos fiéis das suas paróquias? Todos voltarão? Quantos ficarão presos nas malhas da legalidade? Considero essa atitude temerária e ela não leva em conta o equilíbrio das almas que lhes foram confiadas pela Providência. Os senhores regularizam no papel um falso problema de excomunhão, e os fiéis que sigam e obedeçam. E amanhã, eles que voltem atrás com os senhores!
Não consigo ver nisso o respeito pelas almas exigido pela vida sacerdotal.
Em relação à Fraternidade São Pio X, não entendo como os senhores conseguem manter uma recusa tão obstinada aos pedidos de bispos que foram em seu socorro em todas as ocasiões de suas necessidades: a Sagração de Dom Licínio, ato de extrema coragem desses bispos, pois muitos poderiam entender mal esse gesto, como alguns entenderam. Foi pensando nos senhores e em seus fiéis que esses bispos aceitaram essa Sagração.
Em seguida, os seminários da Fraternidade foram abertos aos seminaristas de Campos, recebidos como irmãos.
E além disso, quando a Fraternidade foi chamada para as negociações com o Vaticano, no início do ano 2001, os senhores foram amavelmente chamados a participar. Eles não estavam obrigados a isso, porém, mais uma vez, foram generosos e fraternos no combate pela Tradição.
Diante dessa evidência, a recusa a atender às súplicas da Fraternidade gera para os senhores o terrível peso de uma traição. E nisso, mais uma vez, os senhores se igualam a Dom Gérard. Os senhores, talvez, não vejam a coisa assim, mas também não podem recusar, aos bispos, o direito de se sentir traídos.
E assim como a traição de Dom Gérard causou um drama terrível entre os fiéis franceses, com a divisão das famílias e a profunda decepção pelo abandono e pela fraqueza, assim também os senhores hoje, causam, para os fiéis brasileiros a mesma decepção e as mesmas divisões.
Disse, em 1988, a Dom Gérard, o que repito hoje aos senhores: milhares de fiéis esperam ansiosos que os senhores os confirmem na fé católica, no combate que nos é exigido pela Divina Providência, sem se deixar levar pelo cansaço, pela fraqueza, pelo canto da sereia da legalidade comprometida. O que Nosso Senhor exige é o martírio gota a gota e a límpida e clara profissão de fé católica, sem pacto com os modernistas do Vaticano.
O Papa, sim, a legalidade jurídica, sim. Porém, antes de tudo, responder ao nítido chamado de Deus para o combate pela fé. No dia em que o Papa se converter de verdade, isso aparecerá mais claramente do que a luz do sol. Evidentemente, não é beijando o Alcorão e indo rezar numa mesquita que ele nos mostra essa conversão.
Todos os fiéis das capelas do Rio e de Niterói rezam pelos senhores, pedindo à Virgem Maria que mova os vossos corações de volta à luz da Verdade.
In Christo et Maria
Dom Lourenço Fleichman OSB

domingo, 22 de junho de 2014

HÁ TRINTA ANOS MORRIA GUSTAVO CORÇÃO

Dom Lourenço Fleichman, OSB

Estava eu pensativo sobre este aniversário, lembrando dos tempos de Gustavo Corção, lembrando dos tempos em que ele fazia parte do meu mundo de criança e de adolescente. Crescemos com esta presença constante em nossas vidas, presença do mestre e amigo dos meus pais, cujos livros, desde os quinze ou dezesseis anos já líamos e debatíamos em casa. A Descoberta do Outro, instigante, como que beliscando o leitor para faze-lo pensar, foi o primeiro, como para tantos dos seus apaixonados leitores. Lições de Abismo também nos dava panos para mangas e discutíamos para saber se o Roualt que José Maria vê diante de sua cama, no momento crucial de sua conversão, era uma visão mística de Nosso Senhor ou apenas uma descrição poética daquele momento. De onde me vinha, aos dezoito anos, a naturalidade com que saía com minha mãe, dirigindo, para levar o Dr. Corção ao centro? - Entre pela rua Direita, meu filho! E eu, que era bom conhecedor do Centro, por ter estudado muitos anos no Colégio São Bento, olhava para minha mãe pedindo socorro... Ah! sim, é a Primeiro de Março, que antes se chamava assim! Hoje, passados trinta anos, fico eu querendo estar com ele novamente, para aproveitar melhor de sua sabedoria e de sua fé.  Não é a mesma coisa para nossos colaboradores que o conhecem apenas por seus escritos. Apesar do tempo, vive ainda em minha memória muitas lembranças marcantes da sua presença.

Mas não se engane, leitor. Não é saudosismo que grita exigindo a volta de Gustavo Corção! Na verdade, a falta que provoca este desejo é um vazio da hora, atual e pesado. O que falta no nosso mundo é a veracidade, a autenticidade da sua inteligência. Onde vamos nós encontrar escritores que manejem a lingua como ele? Pior! Onde vamos encontrar pensadores de verdade? Porque a internet está pululando de imbecis, moedas falsas, cheios de erudição mas vazios de discernimento. E isso vai pesando e nos deixando sem apoio, sem bases, sem mestres. Temos com quem ler, mas não temos com quem conversar, com quem aprender. Vamos aos livros e buscamos nos santos, nos doutores, alimento para nossa inteligência e para a fé. Mas "a fé nos vem pelos ouvidos". E sentimos falta de nos chegarmos junto a um mestre e dizer-lhe: "senhor, poderíamos continuar a ouvir palavras sobre o Reino?"

De que nos serviria um Corção para ficar no armário? Qual a utilidade de um Museu Gustavo Corção? Queremos Gustavo Corção vivo, dentro de nós, espada em punho, saindo pelas ruas da cidade, pelas esquinas do mundo, confundindo os traidores da verdade e os inimigos de Deus. Precisamos de leitores que aprendam a pensar com os primeiros livros do mestre, mas que aprendam sobretudo a discernir o tempo presente com a ajuda de Dois Amores Duas Cidades e O Século do Nada. Aqueles nos servem para o iníco, estes para o fim. Aqueles agradam a todos, estes só agradam aos combatentes. E porque? Porque não basta conhecermos o que está a nossa volta, aqui, neste ano de 2008. É preciso conhecer as causas que levaram a Civilização Católica Ocidental a desaparecer nos escombros de 500 anos de desvios, de erros filosóficos, de erros quanto aos princípios universais, mas que rapidamente se transformaram em colossais monstros políticos que geraram a carnificina, o genocídio do nome católico, a crueldade do comunismo, a religião do deus feito Estado para usurpar o Reino Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Cada católico deve conhecer a doutrina, o catecismo, com a profundidade necessária para conter a avalanche de Vaticano II que arrasta o edifício da fé jogando-o ao chão. Ler Gustavo Corção não é obrigatório para este combate, mas não podemos negar que é de grande valia para os soldados dos últimos tempos. Aqui no site dele, temos procurado publicar dezenas de artigos que nos formem, pelo exemplo, pela reflexão, na defesa da verdade e da fé. Agora estamos prestes a oferecer as primeiras aulas em áudio, onde ouvimos a voz, a ênfase dada a uma ou outra frase, o élan de amor num momento de pura poesia ou de profunda mística.

Devemos a conservação dessas aulas gravadas à Dona Marta Soares dos Santos, que durante anos assistiu às suas aulas com um inseparável gravador. É verdade que o professor não gostava muito da idéia, pois jamais passaria por sua cabeça difundir algo gravado de sua voz. Sempre se corre o risco de uma certa vaidade. Mas ele tolerava a coisa, ciente de que, pela importância do assunto tratado, alguns ausentes poderiam aprender alguma coisa daquela maravilhosa doutrina e receber a graça.

Quanto a nós, pobres de nós, já a terceira geração, os últimos que ainda conheceram e conviveram um pouco com Gustavo Corção, mas já sem a honra de te-lo como um amigo e pai, foi-nos passado o bastão, o labor está agora em nossas mãos. Junto com alguns jovens colaboradores de valor, temos trabalhado nesta missão de manter aceso o bom combate. Contamos com todos os admiradores de Gustavo Corção para que os laços da Comunhão dos Santos, na oração e no sacrifício, nos sustente a cada dia.

domingo, 8 de junho de 2014

O MOVIMENTO CARISMÁTICO (III)

A “Igreja do amor” ou o homem no lugar de Deus
 
No livro de Huysmans intitulado Là bas, há uma passagem particularmente importante que evoca a igreja carismática de João (contraposta à Igreja hierárquica de Pedro), que florescerá com a vinda do Paráclito e que se chama a “igreja do amor” (em sintonia com a “civilização do amor” de Paulo VI), a “igreja da reconciliação”, a “igreja ecumênica” ou “universal” (em virtude de seu carismatismo): “É um axioma teológico que o espírito de Pedro vive em seus sucessores. Viverá neles, até a expansão auspiciada do Espírito Santo. Então João, – diz o Evangelho – começará seu ministério de amor e viverá na alma dos novos Papas”. Esse texto mostra claramente o laço esotérico que liga a “expansão do Espírito Santo” (conduzido pela “renovação carismática”) e o “ministério de amor” de João. O autor esotérico Salémi enunciava em 1960: “O novo evangelho de João logo será pregado em toda a Terra” (Le message de l’ Apocalypse, p. 293).
 
Estamos no tempo desse “novo evangelho”: “Invoca-se o Apóstolo S. João – escreve Pierre Virion -, discípulo do amor, contra a autoridade de Pedro. É a velha teoria Rosa-Cruz, que profetiza a igreja esotérica [iniciática] de João, superior à igreja exotérica [não iniciática] de Pedro, e cujos tempos apocalípticos parecem ter chegado. A Igreja Romana deve ceder-lhe o posto, deve desaparecer tal como é: ‘Abriu-se ... o ciclo de João’” (Mystère d’iniquité, p. 146).
 
Surge então a pergunta: que significa essa “igreja de João”, a igreja da terceira hora, a igreja da hora do Espírito Santo? A igreja de João já não é Deus em primeiro lugar, mas o homem; não a transcendência, mas a imanência; não a fé, mas o gosto sensível, o prodigioso, os carismas (democraticamente assegurados a todos, graças ao “batismo do Espírito”); não o dogma, mas a “revelação interior”, o subjetivismo, o profetismo, o iluminismo; não o sacramento instituído por Cristo, mas outra espécie de “sacramento” enxertado em uma corrente oculta (assim é o “batismo do Espírito”: uma paródia de sacramento com efusão da “graça diabólica” através de um rito herético); não a Eucaristia-Sacrifício (daqui vem a fúria contra o rito chamado de S. Pio V), mas a eucaristia-festa; não o sacerdócio ministerial, mas o caráter sacerdotal de todo fiel1; não a igreja hierárquica e carismática ao mesmo tempo, mas uma igreja meramente carismática; não o Papa, mas um sínodo paralisador; não os bispos, mas uma colegialidade sufocante; não os párocos, mas as assembléias presbiteriais; não a hierarquia oficial, mas as comissões, comitês, etc., etc., constitutivos de um governo paralelo; não a Igreja Católica Romana, mas uma igreja universal que inclui todos os cultos tributados a qualquer divindade. Em conclusão: o que René Guénon chamaria de “igreja integral”. E esta “igreja integral”, cujo objetivo é destruir por asfixia a igreja hierárquica tradicional, a igreja de Pedro, deve ser o fruto da vinda do Espírito (os Ranaghan diziam: do “retorno” do Espírito), porque é o “Pentecostes” deste “Espírito” que permitirá a João exercer seu “ministério de amor”!
 
Compreendemos agora porque em nossos dias fala-se tanto de amor: “Enganar-se-á o povo em nome do amor, de um amor que não é a caridade teologal, mas cujo nome usurpa. Assim, nunca tínhamos lido tanto nas publicações maçônicas a frase: ‘Amai-vos uns aos outros’. Mas é sempre empregada, em nome de Cristo, contra sua Igreja” (Mystère d’Iniquité, cit., p. 146).
 
Que fazer?
 
Que fazer diante desta cegueira causada pela invasão carismática, caricatura diabólica do Sacramento da Confirmação, chamada de “batismo” com razão, porque marca a passagem do mundo católico ao mundo oculto? São João da Cruz dizia: “[Uma vez cegada a alma] poder-se-á enganar quanto à quantidade ou qualidade, pensando que o que é pouco é muito, e o que é muito, pouco; e quanto à qualidade, considerando o que está em sua imaginação como uma coisa, quando não é senão outra coisa, trocando, como diz Isaías, as trevas pela luz e a luz por trevas, e o amargo por doce e o doce por amargo (5, 20)” (Subida do Monte Carmelo, L. 3, cap. 8).
 
Hoje, mais do que nunca, é necessário insistir no que constitui a verdadeira vida de fé. Continuemos ouvindo S. João da Cruz: “ (...) e assim, estando a alma vestida de fé, o demônio não a perturba, porque com a fé ela está muito amparada – mais do que com todas as demais virtudes – contra o demônio, que é o mais forte e astuto inimigo.
 
Por isso S. Pedro não encontrou maior amparo do que a fé para livrar-se do demônio quando disse: Cui resistite fortes in fide2 (I Petr 5, 9). E para conseguir a graça e a união com o amado, a alma não pode ter melhor túnica e vestimenta interior, como fundamento e princípio das demais virtudes, que esta brancura da fé, porque sem ela, como diz o Apóstolo, é impossível agradar a Deus (Hebr 11, 6), e com ela é impossível também deixar de agradar, pois Ele mesmo diz pelo profeta Oséias: Desponsabo te mihi in fide (Os 2, 20), que quer dizer: “Se queres, alma, unir-se a mim e me desposar, deverás vir interiormente vestida de fé” (Noite passiva do espírito, cap. 21).
 
Recorramos à Santíssima Virgem para que esmague a cabeça daquele que se faz passar pelo Espírito Santo e quer fazer-se adorado em seu lugar. Recitemos por isso o Santo Rosário com todo o ardor de nossa fé, inimiga da “sensibilidade carismática”.
 
PS: Em nossa edição portuguesa, fizemos um resumo do texto original, modificando também um pouco a ordem do mesmo e alguns títulos e fazendo alguns pequenos acréscimos.

domingo, 25 de maio de 2014

O MOVIMENTO CARISMÁTICO (II)

A iluminação iniciática
O pentecostismo carismático parte de um fenômeno que, segundo parece, quer se fazer passar por uma obra do Espírito Santo; tal fenômeno consiste em uma iluminação iniciática.
A iluminação iniciática constitui o umbral das sociedades secretas, congregações iniciáticas, etc. No movimento carismático, essa iluminação “precipita” a alma num universo que já não é o da fé católica, e sim outro universo. Para se chegar à iluminação iniciática, requer-se uma escolha, uma decisão. No movimento carismático, tal escolha consiste em receber o famoso “batismo do Espírito”. Nota-se que a iluminação iniciática não é algo que se aprenda, mas uma “impressão” que se recebe e que não se pode explicar.
No movimento carismático, nada, absolutamente nada, pode verificar-se sem um membro “iniciador”, que já tenha recebido o “batismo do Espírito” (ou seja, a “iniciação carismática”) e que, por si só, tenha-se tornado capaz de transmitir o “influxo espiritual” responsável pela impressão iniciática. Isso constitui um elemento capital no movimento carismático, elemento que também permite distinguir o Sacramento da Confirmação conferido no seio da Igreja Católica do mencionado “sacramento carismático”, pois somente um bispo pode conferir o Sacramento da Confirmação (ou um sacerdote delegado por ele), e ele não pode transmitir seu poder a seus sacerdotes e muito menos aos leigos. No movimento carismático, ao contrário, o iniciado transmite, através da iniciação, seu próprio poder de “iniciar”. Além disso – coisa estranha – um Cardeal pode receber a iniciação carismática das mãos de um menino dotado de “poderes espirituais” dos quais careceria o príncipe da Igreja. Basta que este menino tenha recebido o “sacramento” iniciático do “batismo do Espírito”. Tendo em vista a natureza hierárquica da Igreja, isso é simplesmente uma aberração!
Assim, os grupos carismáticos podem multiplicar-se até o infinito: basta que tenham um “iniciado”, seja padre, religioso ou leigo, homem ou mulher, velho, adulto ou criança. Isso não importa.
A iluminação iniciática exige um rito
Outro ponto capital é o da necessidade de um rito para realizar a iluminação iniciática.
O movimento carismático é a história de um influxo “espiritual” (alheio à fé católica) transmitido por um “iniciado” mediante um rito que serve de veículo: o “batismo do Espírito” com a imposição das mãos. Rito que os católicos foram buscar entre os pentecostistas protestantes! O movimento carismático não é nada, absolutamente nada, sem esse rito, quer dizer, sem a transmissão de um influxo “espiritual” destinado a produzir uma impressão ou uma iluminação iniciática.
A questão capital: de que natureza é esse influxo iniciático?
Nesse ponto arma-se a pergunta importante: qual é a verdadeira natureza desse influxo iniciático?
Basta ler o testemunho das vítimas da renovação carismática para compreender que o “Espírito” que dá sua força preternatural ao influxo iniciático produz efeitos absolutamente extraordinários pelo seu número, gênero, rapidez, intensidade.
Será um influxo de ordem preternatural, diabólico? É possível. Mas, uma vez que o demônio se sobressai na arte de disfarçar-se em anjo de luz, o que importa é distinguir os influxos. Que anjos intervêm na iniciação? Os bons concorrem somente para preparar a iluminação da fé e têm sempre a maior discrição. Mas os anjos maus podem alimentar qualquer tipo de ilusão e torná-la sedutora, acompanhando-a até de prodígios nos homens que se entregam à sua ação.
A iluminação carismática não pode ter uma origem divina no movimento carismático, porque sua fonte não é a da fé católica.
A doutrina católica dá o remédio contra a sedução diabólica
Visto que o mal contido na iluminação iniciática não é manifesto, as almas não se questionam se tudo está bem ou mal, e caem facilmente na rede infernal sem sabê-lo. Para livrá-las de sua cegueira, seria mister fazer o discernimento dos espíritos, o único meio que permite realmente ver uma inspiração diabólica ali onde se crê ver uma inspiração divina.
Deus, de fato, não se pode deixar roubar o Sacramento da Confirmação por uma caricatura simiesca totalmente alheia à fé católica. Deus, na verdade, é dono de seus dons e pode dar os que quiser, a quem quiser e quando quiser. Mas o católico não deve “tentar” o Senhor (Mt 4,7), diferente do que o pentecostismo-renovação convida a fazer.
Por isso São Vicente Ferrer, assim como Santo Tomás e São João da Cruz, põe as almas de sobreaviso contra a “sugestão e ilusão do demônio, que engana o homem em suas relações com Deus e em tudo o que se refere a Deus” (A vida Espiritual). Ele dá o remédio contra as tentações espirituais suscitadas pelo diabo: “Os que queiram viver na vontade de Deus não devem desejar obter [...] sentimentos sobrenaturais superiores ao estado ordinário daqueles que têm um temor e um amor a Deus muito sinceros. Tal desejo, de fato, só pode vir de um fundo de orgulho e de presunção de uma vã curiosidade em relação a Deus e de uma fé demasiado frágil. A graça de Deus abandona o homem que está preso a este desejo e o deixa à mercê de suas próprias ilusões e das tentações do diabo que o seduz com revelações e visões enganosas” (Ibidem). E também: “Fugi da companhia e da familiaridade daqueles que semeiam e difundem essas tentações e daqueles que a defendem e louvam. Não escuteis seus relatos nem suas explicações. Não procureis ver o que fazem porque o demônio não deixaria de vos fazer ver em suas palavras e obras, sinais de perfeição aos quais vós poderíeis prestar fé e assim cair e vos perder junto com eles” (Ib.). Acrescentamos as palavras de Santo Inácio, “expert” no discernimento dos espíritos: “É próprio do anjo mal, transfigurado em anjo de luz, começar com os sentimentos da alma devota e terminar com os próprios”.
Desde o momento em que a alma cruza o umbral do universo carismático (universo oculto) pode acontecer de tudo. Tudo começa com dons inefáveis: entusiasmo e ardor fervoroso, liberação dos complexos, dos vícios, dom de profecia, de cura, de glossolalia (ou xenoglossia: falar em língua estrangeira desconhecida), etc...
Impossível não se lembrar dessas palavras do Evangelho: “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome, e em teu nome expulsamos os demônios, e em teu nome fizemos muitos milagres? E então eu lhes direi bem alto: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que operais iniqüidades (Mt 7 – 22, 23).

quarta-feira, 21 de maio de 2014

FACEBOOK

Os Homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os Homens já não têm amigos. Esta reflexão de Antoine de Saint-Exupéry (O Pequeno Príncipe, 1942) é hoje desmentida pelos fatos. Atualmente, os mercadores de amigos existem.
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À primeira vista a coisa parece inocente. Inscreve-se em um site de livre escolha e assim se possui um endereço, um perfil no qual se apresenta a própria identidade e os próprios interesses. Depois, atualiza-se esta apresentação eletrônica e se adicionam fotos recentes, relatórios de atividades, desejos e projetos. O conjunto é enviado para uma rede de conhecidos que tem livre acesso a estas informações. A esse ponto, fica fácil fazer amizade e entrar na vida privada dos outros.
O fenômeno suscita muitas dúvidas para o cristão, como sobre os bate-papos inúteis (chat), por exemplo, sobre a curiosidade, sobre o tempo roubado ao próprio dever de estado ou à vida de oração. Mas vamos limitar-nos à seguinte questão: Estas redes sociais (FacebookMySpace, etc.) mantêm suas promessas? Podemos fazer nelas amizades verdadeiras?

FALSOS AMIGOS

O que é amizade? Com Aristóteles, os filósofos definem a amizade com três elementos: a semelhança, benevolência e a reciprocidade. O que acontece com tais elementos nestas redes sociais?
Toda verdadeira amizade é fundada sobre certa semelhança, sobre a posse comum de uma série de sentimentos, julgamentos e vontades. Este é o tesouro comum que irá determinar a verdade e a nobreza da amizade. Se, em vez disso, baseia-se na sensualidade ou na mentira, será apenas uma caricatura. Se for construída sobre a vida de graça e o desejo de agradar a Deus, será uma verdadeira e bela amizade.
Agora, em que se baseiam as relações no Facebook? Em uma espécie de mentira. O sociólogo Dominique Cardon demostra que com o Facebook se desenvolve a “dramatização” de si mesmo, o que os ingleses chamam de show off. No mais das vezes, as pessoas se mostram nuas ou em situações humilhantes. Sobretudo, e geralmente em grupo, as pessoas se mostram à mesa, no trabalho, com raiva ou bêbados em uma festa. Toda vez se manda à comunidade a mesma mensagem: “Eu tenho uma vida badalada, saio muito, sei me divertir, conheço um monte de gente, seja como eu”. Tentamos mostrar aos outros que somos jovens, bonitos, “cool” [legais] e que é bom fazer parte dos contatos. Em resumo, não se perde ocasião de vangloriar-se, arriscando-se a passar por mitômanos.
Uma das provas de que a imagem que se dá de si é falsa está no fato de que nunca se mostra tristeza. Nas fotos, se sorri, se mostra a língua, apoia-se nos ombros dos amigos, se comemora, mas nunca se mostra uma lágrima. Portanto, ninguém nunca se revela totalmente, a identidade que se mostra é construída e artificial, e a amizade que resultará disso também o será.
O segundo elemento de amizade é a benevolência, a benevolentia latina, a vontade do bem do outro. A amizade é toda orientada para o verdadeiro bem do meu amigo e não para meus interesses e o meu prazer. O que tem de benevolente nas “amizades” que prometem as redes sociais?
Em primeiro lugar, precisa saber que um em cada cinco usuários de Facebook utiliza esta rede para encontrar uma vítima para seus próprios maus desejos. Enquanto que mesmo os que têm boas intenções a toda evidência se inscrevem em tais redes para si e não para os outros. Eu torno públicas certas partes de minha vida para torná-las conhecidas e validá-las em meu círculo. Cultivo a ilusão de não ser esquecido, de ser uma pessoa importante e amada. Substituo a satisfação de ter uma pessoa que pensa em mim sempre pela ideia de que muitas pessoas pensam em mim um pouco. Em última análise, tudo está centrado no eu.
Além disso, tal ostentação da própria vida privada comporta outro perigo, o de uma contínua solicitação ao mal. Nas redes sociais, eu vejo o que os outros podem fazer sem mim e eu me descubro muito estúpido para ficar fora do “o que os outros fazem”. Vejo o que me falta para estar completamente na moda e me sinto compelido a fazer mais.
Neste ponto, o que acontece com a gratidão, a generosidade, a reciprocidade, que formam o terceiro elemento da amizade?
Os utilizadores aprendem logo. “Eu tenho 100 amigos no Facebook – escreve um deles – mas na mesa almoço sozinho”. “Eu tenho 257 amigos no Facebook – outro reclama – mas ninguém que me ajude com a mudança”. É a diferença entre a quantidade e a qualidade, entre as relações artificiais e a vida real. No Facebook, a amizade é recompensada com um “click” que não custa nada, com alguma piada grosseira, com algumas novidades descobertas no mural de alguém (o que alguém comeu no almoço, como se vestiu esta manhã a senhorita, tudo acompanhado de fotos). Sobretudo, as relações dos usuários de Facebook recaem no voyeurismo, porque se eu conto sobre mim é justamente para despertar a curiosidade nos meus “amigos”. Que sentido faz brincar de esconde-esconde se ninguém me procura? Graças ao Facebook, não precisa mais espiar pelo buraco da fechadura, a minha vida e a dos contatos da minha rede são visíveis a todos. “No Facebook você se comporta como um porteiro”, diz um psiquiatra. É neste nível que se coloca essa estranha amizade.
Definitivamente, as redes sociais destroem um dos elementos mais bonitos e mais consoladores da vida humana, a verdadeira amizade.